sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

pastor

o pastor guardava ovelhas
enquanto os olhos pastavam.

via o verde como quem via verdades
e vertia o que tinha para dar aos outros.

pedia ao tempo para voltar a trás
mas o tempo não lhe dava casa nem guarida
nem era nem chegada nem partida
nem tinha sequer o que o tempo tinha
porque nem minhas nem tuas eram as vinhas
mas vinho bem meu e bem teu era
salvando a alma que definha e a calma que se avizinha
porque nem tem sequer o que o tempo tinha que ter
para ter tanto tempo como o que já tinha tido.

pobre pastor guarda ovelhas,
não toca tambor porque não era adão
mas eram rosadas as suas maçãs
do tinto que tragava por entre ver o gado aos saltos
e o copo a passar de alto a baixo.

pobre pastor era mais rico homem que muita gente rica
e não tinha nada por dar tudo.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

cássio e cassandra

cássio fitava cassandra;
a sua ciência era a demência e em decadência nada mais fazia senão especar.

cássio casamenteiro era
mas por eras não casou ninguém:
quem acha amores sem nunca achar o seu
ou por loucura ou por s'achar do céu
é homem de ter já vendido o véu
que nunca deu a cassandra.

orfeu pecou por olhar para trás,
mas cássio só o fez por querer ver
os olhos que nunca derramaram por ele.

mal ele nota já vai cassandra lá fora,
de flor na mão de outro rapagão:
cássio chora a um canto,
da alegria que era seu manto
nasce o pobre s. turno
e solta um pranto:
"se por eurídice se desfizeram
cantos, que findem amores que não meus;
se cássio casamenteiro não casa quando quer,
há-de lá casar outro outrem quem quiser;
mas por obra de boda feita
porque quem lhe fizeram a desfeita
há-de morrer há espera da eleita:
a felicidade é coisa estreita
e à direita do céu não há nada."

cassandra toma-lhe a mão,
"ao lado do céu há estrelas p'lo chão.
cheiram a rosas na face dela,
sabe a mel ao som das velas,
parecem corvos mas são musas,
ouvem-se quimeras mas é só música,
quem espera sempre alcança
e quem outros casa não perde esperança:
flores é o que não falta,
mas amor como o que te dou desde criança,
horrores de te perder
e pressa em te alcançar
nunca falta.
volta cássio ao meu regaço,
é desta que vamos casar".

domingo, 19 de janeiro de 2014

III


Dormir é pouco. Cansa as ideias de quem quer sonhar
Viver não trouxe a sorte de quem dormiu sabendo que podia acordar
Não vêem neles a casa de seus pais
E não se lembram que no fim ninguém quer partir
Só quem não sonhou quer acordar
Só quem não dormiu se quer deitar
Houvesse outrora tempo de meio passo
Mas eles não vêem que o mundo não é um traço
Não sabem do peso do seu espaço
Só o nome que a semente lhes deu
Promete-lhes um lugar para todos
E sem questões deixaram-se a restos
O coração é mais leve se a cabeça flutuar
De pés ancorados não podem navegar
E o espaço é tanto entre os dois
O espaço é tanto entre os dois

sábado, 11 de janeiro de 2014

(desejo de deixar tudo e ser nómada)

queima-se a agonia do homem
e na mancha de sangue retira-se apenas o sofrimento:
ele é santo e tem como único pranto
não ter nem dor nem fogo na vida.

arquitectos que edificaram dolmens
e levantam dúvidas, criam acesos os monumentos:
morte no canto e na beleza, a campa
de quem viveu a enterrar caveiras.

não houve alquimia que chegasse
para transformar fome em vales,
onde crescem vinhas
e vinham de todos os cantos saciar sedes
num riacho que beijava o mar noutras paragens.

nunca as vi, mas de mantos de morte estava já eu farto:
ser nómada ou não ser nada:
ser pegadas ou conforto...
não espero que a casa se faça horto
nem que as caçadas se façam funerais:
largo tudo para ser morto para vós
e por agora viver mais.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

retalhos #23

gostava de não ter fome quando estivesse no teu mundo;
sabes, muito raramente me apetece
outro que não pão
em terrina, longe do veado com açafrão
e dos 2 copos de bons vinhos que me dispõe a tua criada
de bom tom, e fina.
(pão, amor, que por Deus se benze-
e tu contando-lhe o valor como um punhado de cêntimos
que largaste na mala, por nada.)

a paixão serve-se a convidados, tu sabes; e é dissecada
com facas de prata e sorvida em cálices de cristal.
o amor,
e tu não o sabes, amor,
cabe no triste alguidar que nem por seu peso vale,
e peca talvez por leveza, quando se deixa tragar
por olhos cansados e mãos sujas.

mas tu és limpa, amor,
com a tua água-de-rosas adocicada
e com a tua écharpe de penas de coruja.