segunda-feira, 30 de junho de 2014

Ode a Neruda

sempre que bebo café sozinho
o neruda senta-se na minha cadeira
eu bebo meu café em pé assim
como quem quer fumar um cigarro à varanda
e esses dois, o meu e o dele
caem lentamente como as torres gémeas em
nova iorque
a minha tragédia pessoal

o ambiente fica sempre pesado
eu nunca fui homem suficiente
para me oferecer a tirar-lhe o casaco
mas não estou errado,
ele sabe que fazemos todos o mesmo
há-de ter havido quem tenha morto
bem mais espanhóis que o alvares pereira
mas alguém se esqueceu de apontar
o seu nome
e agora é como se esses espanhóis
nunca tivessem morrido
somos nós a dar o limbo da existência
o purgatório cruel a gente do passado
com as nossas palavras assertivas
e os nossos factos radicados.
o alvares pereira devia ser um filho da puta.
o neruda é um filho de uma puta.
mas escreve como um
e há-de ser por isso
que está por aqui agora.

sábado, 21 de junho de 2014

memórias de guerra

"lembras-te?"

todos os dias.
repetido.
por todas as paredes,
um lugar comum, crucificado.

"era aqui que costumávamos brincar"

eu não.
quem são vocês?
a criança que eu fui
não reconhece o adulto que dela brotou.

"mas os pais vão ficar chateados"

que é deles agora?
ficariam orgulhosos,
sou um herói de guerra,
mas nenhum rei da terra de onde eu venho teve de mo dizer:
bastou olhar na lápide dos meus velhos
para ver a mesma foto-tipo-passe,
a olhar sem condescendência,
apenas
amor(te).

"não, tu é que és"

pois sou.
vocês foram todos.
restam-me sombras,
que guardo na forma de tostões minuciosamente trocados,
sem jukebox para reviver as memórias.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

cabaret voltaire (nadadanada)

seis loucos logo foram federados
como construtores, que quem quer que fosse,
nada sabia sobre seis loucos (ora tolos),
a horas mal dadas por dada
e por Blabla e com palavras
caras e ricas e pouco dignas
de quem se pinta como
um não-pintor
não-escultor
não-escritor
não-artista
artista.

o que é certo e sabido é que
para cuspir nos -ismos
e para especar a destruição ao espelho
e falar docemente "olá amor
no fim comes-me como mais queres"
hão-de lá eles estar,
prontos a repulsar
e a reusar
e a recriar
e a reusar
e a alimentar-se do que quer que seja nutritivo da rejeição,
porque na face da aceitação,
desta vez do outro lado da galeria,
sem espelhos nem rodeios,
só é preciso um olhar de aprovação
para cravar o fim do sim-sim/não-não
e da corrida de cavalos por diversão.

5

na casa onde ele morava,
havia bailarinas penduradas nas paredes:
cada uma com 5 chagas:
quatro para nós e uma para os deuses,
para poderem fazer vida do que quiserem.

quinta-feira, 12 de junho de 2014

lá,
longe,
para lá do vale de silicone,
onde as tretas são sinceras
e as pretas dançam o samba quando o canto não é choro,
o super-homem tem a sua própria mentalidade e consciência superior
e escolhe ir dançar o carnaval no rio.

lá,
longe,
o tom jobim tocou a bossa nova,
o tom zé falou no tempo da nossa vovó
e mau tom é só quem não esboça um sorriso.

lá,
bem longe,
as favelas crescem nas montanhas,
com felicidade na cara da pobreza,
bola no pé
e sonho de realeza.

lá,
mais perto que longe,
a longevidade são mais anos para fazer sensação,
quem mexe bem o pé ou vai fintar
ou vai marchar:
ficar parado é que não,
porque bem sabem que a canção é a solução:
ordem e progresso de nada valem
se quem tem voz grita
e se quem devia andar fica parado.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

saudade (erróneo)

às tantas, com o b-a-ba feito,
a criança enforcada no fio de contas
tinge o chão de sangue e num acto de rebeldia escreve o nome,
com a altivez já posta,
fato vestido
e factos comprovados,
desfila e ascende a velho.

ainda há, contudo, quem queira voltar à criançada,
quando o cangalheiro tira a quem quer que seja:
ora tira as bulhas e as tintas e os joguetes,
ora tira as putas e o vinho verde...

claro que a ver de longe a infância é só reminiscência:
quem vê uma mata queimada não se evita a questionar se o sentido estético não supera a morte,
se o negro pintado não supera os campos que arderam,
se o berço dos fantasmas não supera o jazigo das folias!

toda a gente gosta de festa,
mas ninguém fica para limpar;
toda a gente quer ser criança,
mas todos crescem,
todos trabalham,
todos se arrependem dos erros:

na meta ninguém se arrepende por ter corrido;
só choram.

terça-feira, 10 de junho de 2014

Há noites em que o vento dança
Com cara de gente
Em que o homem pensa grisalho
Ao som dos estores dementes
Em que a cortina velha se solta
E balança

Há noites em que o vento dança
Como um doente
Em que o barulho do metal faz por derreter
Essa ideia tola de que o mundo
Percebe de poder
Ou que alguma vez se cansa.

Só Deus sabe que a gente teria feito melhor
Se nos fosse dado a escolher
Se tivéssemos maneira de pagar a fiança.

Ainda assim a portada guincha
Pela madrugada como uma criança,
Ainda assim o vento
Sem ter como saber, dança.

segunda-feira, 9 de junho de 2014

do outro lado do rio havia casas,
mas eles já não dormiam lá.
só se viam fachadas sem gente,
sem nada nem ninguém.

do outro lado do mar havia um jardim,
mas as flores trouxeram-nas para cá:
fizeram uma coroa para um funeral
de alguém que nunca acreditou na morte.

do outro lado da cidade eu via pássaros,
mas nunca os vi cantar.
só voavam de um lado para o outro,
com o rumo de um bêbedo
e a conversa de um homem morto:
-um copo de whisky;
-um cigarro;
-um tiro no escuro
e um sonho arruinado por passar a auto-estrada sem olhar para os dois lados.

(do outro lado de mim estavas tu
e tudo o resto perdeu a sombra.
mal de ti só quando vais:
fica aqui.
ilumina os escombros.)

sábado, 17 de maio de 2014

12 princípios básicos

1. respirar é caminhar lentamente para a morte; o oposto é a morte em si
1. tudo é tão importante como o que o precede
1. tudo é tão importante como a loucura
1. tudo o que for apresentado de forma organizada ganha credibilidade
1. todos os que derem o braço a torcer à amargura ganham credibilidade
1. quem se prendeu em ternuras é quem tem a maior bagagem
1. quem é declarado lunático pertence à própria realidade espástica
1. quem é declarado espástico pertence à realidade que todos desprezam
1. desprezar a realidade é considerado um prazer público livre de abuso
1. espezinhar a igualdade é considerado um objecto lúdico que vive do uso
1. saber fazer listas é sobrevalorizado
12. fazer tudo com um objectivo prático era o trabalho dos deuses
(13. e vejam onde eles estão agora)

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Estou cansado e o tabaco
dorme sobre a mesa.
Há um adamastor para cada momento
rindo atrás das nossas costas
consciente das suas hipóteses.

terça-feira, 15 de abril de 2014

vazio

dói-lhes o peito;

assentaram-nos em contraplacado
e os soldados que partiram para o ultramar
voltaram para não regressar.

sentem-se a definhar;

se brilham os dias é porque as balas são de ouro;
e em cada coração estão 20 delas cravadas
e por cada guerra há mil belas que não serão mais amadas
e por cada morte há uma vela queimada...

a cera encherá os vazios que outros deixaram.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

pm, 1

são horas que já não sinto,
infiéis às portas que abro.

deslizam-me por entre os dedos
e num surto de desassossego
quebram-me.

passam dias desde que vi
e desde então nunca mais fui cego.

sábado, 29 de março de 2014

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vou ser trabalhador,
de borra tintas na mão
vou ter o meu salário
só para que o operário
viva ao ritmo do canhão.

num sono polifásico para maximizar a produtividade,
tratar gente por animais para potenciar a desumanidade
e na humildade do meu manto
mancho-me com o meu encanto

enquanto entoo esta canção,
sem censura que se lhe digne:
ninguém guarda o pastor,
o que eu digo cabe-me a mim.

fui homem de muitos amores
(se é que os posso chamar assim),
passaram por mim muitos autores
(poucos saíram como primeiro os vi).

dizem que nem homem sou,
que só sorrio porque outro se calou
mas o meu ofício só isso me permite:
sou feliz no teu silêncio, eu admito!,

mas lá porque sou pago por rabiscar o teu trabalho;
mas lá porque sou pago por fazer de ti o meu gado;
mas lá porque sou mau por te querer no caralho
não sou mais monstro do que quem quer a revolução,
eu vivo bem, se os outros não é mais problema deles do que meu:
cada um por si e todos pelos seus!
por entre mantos e véus promentem surgir
mas a verdada não é de ninguém,
só se a roubarem a quem a já tem.

terça-feira, 25 de março de 2014

o que sou quando não sou

quem foi que nos bordou cruéis?;
quem foi a mãe de trapos que nos teceu?;

com ceras e sedas,
alvos como a noite,
reflectidos numa foice,
fosse a morte quando fosse.

tecidos por mórias,
a dois suspiros dos restos do velho tirésias:
especo falésias e elas me engrandecem,
mais do que o cálice de onde beberam o meu sangue.

o corpo é fraco
e à carne faltam-lhe os anos que já tem:
parece borracha,
nem para os cães serve.

a alma aos poucos ferve,
sente o inferno que a há-de danar:
os corações foram pesados à nascença:
não valem a pena.

a crença é a única coisa que nos mantém suspensos por uma corda:
a uma faca de distância, a espera já está morta
e anseio por nascer:

uma palmada no rabo,
chupeta na boca
e um anjinho de prata,
pronto para errar outra vez.

segunda-feira, 3 de março de 2014

A lua cínica saiu por onde entrou
Com o seu velho vestido
Cor de mel
Mas sem palavras para mim;
Não, o Tempo nunca foi da pele que lavrou
Não, correr nunca foi fugir do fim.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

pastor

o pastor guardava ovelhas
enquanto os olhos pastavam.

via o verde como quem via verdades
e vertia o que tinha para dar aos outros.

pedia ao tempo para voltar a trás
mas o tempo não lhe dava casa nem guarida
nem era nem chegada nem partida
nem tinha sequer o que o tempo tinha
porque nem minhas nem tuas eram as vinhas
mas vinho bem meu e bem teu era
salvando a alma que definha e a calma que se avizinha
porque nem tem sequer o que o tempo tinha que ter
para ter tanto tempo como o que já tinha tido.

pobre pastor guarda ovelhas,
não toca tambor porque não era adão
mas eram rosadas as suas maçãs
do tinto que tragava por entre ver o gado aos saltos
e o copo a passar de alto a baixo.

pobre pastor era mais rico homem que muita gente rica
e não tinha nada por dar tudo.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

cássio e cassandra

cássio fitava cassandra;
a sua ciência era a demência e em decadência nada mais fazia senão especar.

cássio casamenteiro era
mas por eras não casou ninguém:
quem acha amores sem nunca achar o seu
ou por loucura ou por s'achar do céu
é homem de ter já vendido o véu
que nunca deu a cassandra.

orfeu pecou por olhar para trás,
mas cássio só o fez por querer ver
os olhos que nunca derramaram por ele.

mal ele nota já vai cassandra lá fora,
de flor na mão de outro rapagão:
cássio chora a um canto,
da alegria que era seu manto
nasce o pobre s. turno
e solta um pranto:
"se por eurídice se desfizeram
cantos, que findem amores que não meus;
se cássio casamenteiro não casa quando quer,
há-de lá casar outro outrem quem quiser;
mas por obra de boda feita
porque quem lhe fizeram a desfeita
há-de morrer há espera da eleita:
a felicidade é coisa estreita
e à direita do céu não há nada."

cassandra toma-lhe a mão,
"ao lado do céu há estrelas p'lo chão.
cheiram a rosas na face dela,
sabe a mel ao som das velas,
parecem corvos mas são musas,
ouvem-se quimeras mas é só música,
quem espera sempre alcança
e quem outros casa não perde esperança:
flores é o que não falta,
mas amor como o que te dou desde criança,
horrores de te perder
e pressa em te alcançar
nunca falta.
volta cássio ao meu regaço,
é desta que vamos casar".

domingo, 19 de janeiro de 2014

III


Dormir é pouco. Cansa as ideias de quem quer sonhar
Viver não trouxe a sorte de quem dormiu sabendo que podia acordar
Não vêem neles a casa de seus pais
E não se lembram que no fim ninguém quer partir
Só quem não sonhou quer acordar
Só quem não dormiu se quer deitar
Houvesse outrora tempo de meio passo
Mas eles não vêem que o mundo não é um traço
Não sabem do peso do seu espaço
Só o nome que a semente lhes deu
Promete-lhes um lugar para todos
E sem questões deixaram-se a restos
O coração é mais leve se a cabeça flutuar
De pés ancorados não podem navegar
E o espaço é tanto entre os dois
O espaço é tanto entre os dois

sábado, 11 de janeiro de 2014

(desejo de deixar tudo e ser nómada)

queima-se a agonia do homem
e na mancha de sangue retira-se apenas o sofrimento:
ele é santo e tem como único pranto
não ter nem dor nem fogo na vida.

arquitectos que edificaram dolmens
e levantam dúvidas, criam acesos os monumentos:
morte no canto e na beleza, a campa
de quem viveu a enterrar caveiras.

não houve alquimia que chegasse
para transformar fome em vales,
onde crescem vinhas
e vinham de todos os cantos saciar sedes
num riacho que beijava o mar noutras paragens.

nunca as vi, mas de mantos de morte estava já eu farto:
ser nómada ou não ser nada:
ser pegadas ou conforto...
não espero que a casa se faça horto
nem que as caçadas se façam funerais:
largo tudo para ser morto para vós
e por agora viver mais.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

retalhos #23

gostava de não ter fome quando estivesse no teu mundo;
sabes, muito raramente me apetece
outro que não pão
em terrina, longe do veado com açafrão
e dos 2 copos de bons vinhos que me dispõe a tua criada
de bom tom, e fina.
(pão, amor, que por Deus se benze-
e tu contando-lhe o valor como um punhado de cêntimos
que largaste na mala, por nada.)

a paixão serve-se a convidados, tu sabes; e é dissecada
com facas de prata e sorvida em cálices de cristal.
o amor,
e tu não o sabes, amor,
cabe no triste alguidar que nem por seu peso vale,
e peca talvez por leveza, quando se deixa tragar
por olhos cansados e mãos sujas.

mas tu és limpa, amor,
com a tua água-de-rosas adocicada
e com a tua écharpe de penas de coruja.